O Relatório Anual do Estado Mental no Mundo, publicado essa semana pelo O Globo, mostra que o mundo ainda não recuperou a queda no bem-estar psíquico observado na pandemia. Nesta pesquisa o Brasil ocupa o 3º pior índice de saúde mental dentro de um ranking de 64 países. Essas informações reforçam a importância de pensarmos com profundidade na relação entre trabalho e saúde mental, uma vez que o trabalho em si e os novos modelos propostos podem levar a um enfraquecimento dos laços sociais e a possibilidade de adoecimento psíquico. Logo, iniciamos este artigo com uma pergunta chave: até que ponto a saúde psíquica dos profissionais tem sido comprometida não somente pelo evento traumático, mas sobretudo pelas mudanças nas relações e nos modelos de trabalho pós-pandemia?
O trabalho é uma atividade central na sua vida?
O trabalho é base constitutiva da cultura, podendo ser uma importante fonte de prazer ou de dor. É responsável pelo estabelecimento de laços sociais, fixando os trabalhadores firmemente à realidade e fornecendo-lhes um lugar seguro na comunidade humana, conforme esclarece a Freud (1930).
Portanto, o trabalho possui um potencial de impactar diretamente a saúde dos trabalhadores, na medida em que pode levar a autorrealização ou ao sofrimento. Ambos podem ser causados por situações experimentadas nos contextos organizacionais. Nesses, o confronto do trabalhador, em sua capacidade singular e subjetiva de produção, com a flexibilidade ou com as restrições impostas pelo trabalho o expõe a diferentes graus de satisfação ou frustração. Nas últimas décadas, os psicólogos do trabalho e os psicanalistas têm observado em suas pesquisas um aumento das psicopatologias causadas pelo trabalho, sobretudo a partir da pandemia Covid-19.
É importante resgatar historicamente que o trabalho passa a ocupar um lugar de centralidade na vida de homens e mulheres, a partir da Revolução Industrial e do consequente avanço do capitalismo. Nesse contexto, há um estímulo contínuo ao aumento da produtividade e à obtenção do máximo de resultado, na medida da valorização do capital. A introdução da administração científica, da organização e dos métodos de trabalho, das máquinas, das tecnologias e dos sistemas de governança, por um lado, atendem às necessidades de agilidade, qualidade e inovação. Por outro, contudo, podem tornar as condições de trabalho propícias ao distanciamento do empregado em relação ao produto do seu trabalho, ou ainda, mais abstratamente, dificultarem a articulação entre a contribuição do trabalhador aos objetivos da organização. A manutenção do trabalho vivo, isto é, aquilo que é preciso inventar e acrescentar de si mesmo às demandas das organizações, como nos coloca Dejours (2002), torna-se essencial para sustentar esse laço social tão importante para a constituição do sujeito, garantindo ao trabalhador um papel social contributivo e crítico. Em face de qualquer vulnerabilidade, seja do contexto ou do trabalhador, as relações de troca ficam comprometidas, abrindo um caminho para o aparecimento de sintomas, que caracterizam as doenças do trabalho.
O que mudou na sua atividade de trabalho com o advento da pandemia?
A Covid-19 se configura como um evento disruptivo, uma catástrofe – palavra que significa fim súbito, virada de expectativas – de cunho natural. A pandemia foi o resultado da migração do vírus para espaços sociais urbanos, provocando consequências em torno das atividades de trabalho. Entre elas estão as novas formas de trabalhar, de estabelecer relações, de adquirir conhecimentos, de desenvolver novos comportamentos. Destaca-se uma mudança significativa, a adoção do modelo de home office, que vem colocando em questão a centralidade do trabalho na vida das pessoas vis à-vis o resgate do espaço para os interesses e para as relações pessoais. Nesse sentido, o home office configurou-se como uma boa saída para a situação pandêmica emergente, embora tenha colocado os trabalhadores diante de paradoxos, diante de escolhas difíceis entre trabalho e vida pessoal. As repercussões da catástrofe e dos conflitos em cada sujeito colaboram para a adaptação ou não aos novos modelos, cujo resultado vem se apresentando gradativamente no decorrer do tempo.
Os estudos indicam que a pandemia Covid-19 tem contribuído para o aumento do adoecimento dos trabalhadores, sendo responsável pelo aparecimento de diversos sintomas. Como destaca Birman (2020), os sintomas são de três espécies: a) as neuroses de angústia, denominadas no século XX como síndrome do pânico, na qual se manifesta angústia real em estado puro; b) os sintomas hipocondríacos, reflexo da redobrada atenção do sujeito com o corpo e suas manifestações naturais do dia a dia; c) a depressão, fruto do isolamento físico, que leva os sujeitos a sentirem um esvaziamento de sua potência existencial. Em todos esses quadros, verifica-se que a experiência traumática, conforme nos revelou Freud, não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Sendo assim, são os fatores contingenciais, que serão capazes de mobilizar a história pessoal de cada um e delinear possíveis respostas, pois o trauma por si só é estrutural – uma vez que é uma experiência difícil de ser nomeada. Diante das mudanças, da emergência desses sintomas e do comprometimento da produtividade no trabalho, a possibilidade da irrupção da síndrome de burnout é aumentada.
Você está atento para um possível aparecimento da sorrateira síndrome de burnout?
É sabido que até o final do século passado os acidentes, a LER/DORT e as intoxicações industriais ocupavam a posição de protagonistas das doenças ocupacionais. Paulatinamente, a atenção em relação às doenças físicas deu lugar a uma preocupação cada vez maior com as doenças psíquicas, motivadas pelos estados de cansaço, esgotamento, estresse crônico e despersonalização próprios das exigências do modelo capitalista de produção, que tornaram o ambiente percebido como vulnerável, incerto, complexo e ansioso, levando, cotidianamente, o ser humano a se confrontar com seus próprios limites.
Recentemente, essa preocupação é reforçada pelas consequências do impacto do trauma da pandemia Covid-19 sobre os sujeitos, levando à síndrome de burnout, síndrome do estresse crônico, a ser reconhecida como doença ocupacional, própria das relações de trabalho, e incluída na CID-11, em 1º de janeiro de 2022. A síndrome, que faz o trabalhador “perder o fogo”, “perder a energia”, é aquela na qual há uma perda de sentido em relação ao trabalho, de forma que o trabalhador, especialmente aquele altamente motivado, ao tentar responder mais e mais às exigências da tecnociência e enfraquecido em sua possibilidade de sustentar laços, entra em colapso, já não se importando mais e fazendo qualquer esforço parecer inútil.
O que é esperado de você, das organizações e do Estado?
É fato que o trauma causado pela pandemia e suas consequências sobre a saúde das pessoas está fazendo com que haja uma maior atenção da sociedade e das organizações em relação à saúde mental. As áreas de recursos humanos têm sido levadas a se debruçar sobre esta pauta, a partir da demanda dos presidentes e das principais lideranças das empresas, que se preocupam, como nunca relatado, com a saúde mental e a manifestação de sintomas por parte de seus trabalhadores.
Submetidos a outros modelos de trabalho e ainda sob os impactos do trauma, são observadas no cotidiano de trabalho das equipes manifestações de irritabilidade, estresse, esgotamento e depressão. Estas ocorrências têm sido coletivas, constatadas pelo registro de licenças e afastamentos com a indicação de doenças mentais ou síndrome de burnout. Consequentemente, ações concretas pela busca de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais para orientação e efetivo tratamento têm sido observadas. Essa nova pauta, ainda que pareça limitada a poucas empresas, se revela de grande importância, pois trata da inclusão pelas organizações da dimensão psíquica do humano, até então pouco valorizada em sua complexidade e capacidade de comprometimento dos resultados organizacionais.
A Covid-19 coloca para as organizações e para o Estado uma pauta inédita, que é a dos cuidados preventivos com a saúde mental e com o tratamento eficiente da doença, pois seus impactos em cada trabalhador e nos coletivos podem ser devastadores. É hora de as empresas demostrarem sua capacidade de inovação na promoção de políticas e práxis de saúde depois da grave catástrofe mundial. Elas devem buscar soluções adequadas e singulares quando se fala de pessoas. Da mesma forma, os trabalhadores devem responsabilizar-se pelas suas escolhas, pela sua saúde e por seu desenvolvimento.
Referências bibliográficas:
BIRMAN, J. O trauma da pandemia do coronavírus: suas dimensões políticas, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.
DEJOURS, C. Trabalho vivo. Tomo I, Sexualidade e Trabalho. Brasília: Paralelo 15, 2002.
FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1930.
JORNAL o GLOBO. Brasil tem terceiro pior índice de saúde mental em ranking de 64 países. Edição de 01/03/2023.
Rosilene Ribeiro
Doutora em psicanálise | Psicanalista | Consultora em relações humanas e organizacionais | Professora