HOME OFFICE: destino ou escolha?

Na minha pesquisa e experiência escutando pessoas e organizações, provocando-as em suas demandas, tenho refletido e analisado sobre o home office e seu impacto nas relações dos trabalhadores com o trabalho, com os seus líderes, com os times e com as organizações. A multiplicidade de vozes, os significantes articulados e os diversos comportamentos demonstrados, em geral, sugerem uma resposta paradoxal à situação emergente, aos novos discursos e dispositivos adotados

A pandemia Covid-19 se constitui em uma emergência, em um evento traumático, consequência de um choque violento que solapou a humanidade – o acaso que surge com a face da morte e do inimaginável. Semelhante às guerras, ela é responsável por tensões sociais e culturais, assim como pela causa de mortes e adoecimentos físicos e psíquicos relevantes. Isto porque, como revelou Freud, 

a experiência traumatizante é aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre, pois invade o aparelho psíquico, indo além dos limites da linguagem, sendo difícil colocar palavras para explicá-la e simbolizá-la. A assimilação do trauma depende dos fatores contingenciais capazes de mobilizar a história pessoal de cada sujeito.

Esta situação traumática impactou em 2020 diretamente os mercados globais e o mundo do trabalho. Da noite para o dia, a economia mundial foi ameaçada, as bolsas de valores despencaram, e a continuidade do trabalho nos mesmos modelos até então praticados foi transformada, na medida da necessidade do isolamento e distanciamento sociais.

O home office, inicialmente uma alternativa de trabalho esporádica e experimental, viabilizado pelos avanços tecnológicos, que permitiram o desenvolvimento e crescimento de modos de trabalho a distância sob o guarda-chuva do chamado teletrabalho, teve início nos EUA na década de 70. O objetivo principal era reduzir os deslocamentos entre a casa e o trabalho e, nesse contexto, o Brasil regulamenta essa prática em 2017.

Portanto, na pandemia Covid-19 o home office é imediatamente adotado como uma forma de manter o trabalho e preservar a vida, fazendo com que 11%* dos trabalhadores brasileiros vissem seus destinos marcados por essa nova modalidade, que rapidamente foi expandida e estabelecida como uma forma de trabalho permanente em muitas organizações. 

Diante desse situação, uma primeira pergunta se impôs:

Será que uma decisão precipitada em relação a adoção do home office, como proposta de um novo modelo estabelecido de trabalho, contribuirá para uma maior fragilização das relações de trabalho ou, no dizer da psicanálise, dos laços sociais em seu papel na construção da subjetividade, naquilo que é mais próprio e singular em cada trabalhador?

As pesquisas realizadas por ocasião do desenvolvimento de minha tese – “Home office na pandemia Covid-19: uma análise interdisciplinar sobre os impactos no trabalho” – verificaram que, prematuramente e precariamente, desenvolveu-se em meados de 2020 o embrião de um novo modelo organizacional, que já havia sido fecundado há algum tempo. Efetivamente, o home office representa uma alteração na relação do trabalhador e das organizações com o trabalho, que envolve diversos questões a serem aprofundadas:

  • mudança de local físico;
  • necessidade de recursos e suporte da empresa;
  • isolamento do ambiente de trabalho;
  • distanciamento físico da hierarquia superior, da equipe direta e dos colegas;
  • exposição intensa a rotina familiar;
  • complexidade na administração do tempo: flexibilidade x intensidade;
  • alteração dos vínculos profissionais e familiares;
  • menor visibilidade pelas diversas áreas da organização;
  • necessidades de ações de alinhamento e engajamento por parte das empresas;
  • dúvidas das lideranças sobre como fazer a gestão das equipes;
  • uso intensivo e extensivo de tecnologias;
  • precariedade no desenvolvimento dos relacionamentos, da empatia, da carreira e do trabalho propriamente dito.

Alguns significantes são identificados como indicadores de dúvidas sobre a escolha do modelo de home office: objetificação das pessoas, mecanização das relações, falta da afetividade, espontaneidade e intimidade, controle dos trabalhadores pela tecnologia, ênfase no processo e na robotização. Paralelamente, outros significantes são apontados como certezas do modelo home office: segurança pessoal, economia de tempo, ganho de objetividade e foco no trabalho, flexibilidade, equilíbrio entre vida profissional, familiar e pessoal.

Tanto a psicologia do trabalho como a psicanálise entendem que

os laços sociais e a possibilidade de construção do trabalho através do relacionamento com o Outro, da cultura e da linguagem, são os garantidores do sujeito ter algum nível de prazer e satisfação em fazer parte do grupo social, assim como são os que permitem aos trabalhadores desenvolverem mais e mais sua forma única de trabalhar, suas competências, e agregar de forma cooperativa para o coletivo de trabalho.

 As narrativas dos profissionais e das organizações apontam para um discurso que comporta um paradoxo, pois são identificadas dúvidas e certezas, confortos e desconfortos em relação as modalidades de trabalho. Uma tensão permanente é verificada. 

O novo modelo de trabalho, tratado pelas organizações como estratégia a princípio defensiva, mas talvez apressadamente sendo vista como adequada, definitiva e lucrativa, precisa ser analisada com cautela e profundidade. As organizações, sobretudo as lideranças e as áreas de recursos humanos, e o Estado necessitam estar atentos aos trabalhadores, que estão experimentando o desconforte de um conflito, consciente ou inconsciente, frente a uma situação paradoxal. Submetidos a uma nova organização do trabalho, os profissionais obtêm benefícios relacionados à conquista de um espaço social e de trabalho e, ao mesmo tempo, correm o risco de estarem sendo submetidos demasiadamente ao isolamento, à solidão, ao individualismo, a competitividade e ao desamparo. Ao se generalizarem as decisões e as ações, não se deve perder de perspectiva o sujeito trabalhador em suas questões particulares. Uma pandemia se caracteriza por ser uma situação de exceção e as respostas a ela também devem ser.

A opção pelo trabalho híbrido indica uma escolha que busca lidar com o paradoxo. Porém, depois de 670.000 mortes somente no Brasil, após viver a perda de tantos amigos e familiares e lidar com muitos trabalhadores que ainda lutam com os sintomas da Covid longa, devemos recordar Freud, que coloca:

os mecanismos de defesa nos fazem esquecer precocemente da catástrofe, pois também nos abalamos diante dos acontecimentos terríveis dos quais somos expectadores e não somente quando a catástrofe atinge alguém que nos é caro. Na medida em que há prejuízos para a saúde do sujeito, seja física ou psíquica, sua capacidade de investimento no Outro e nos laços de trabalho ficam prejudicadas. Isto porque a energia pulsional fica à deriva e é mobilizada para lidar com a situação traumatizante.

O trauma desorganiza o sujeito e requer o investimento de muita energia para tentar dar sentido ou deslocar aquele corpo estranho que o invadiu, e que precisa ser nomeado, a partir do campo do simbólico e da linguagem. Esses desdobramentos colocam o sujeito numa condição de isolamento subjetivo e, em alguma medida, o incapacitam para um outro investimento, ou seja, estabelecer laços sociais em face de um novo modelo de trabalho.

É importante destacar que, para além das inteligências, identificamos em Dejour

o desenvolvimento do conceito de que o trabalho também necessita do corpo, uma vez que o próprio trabalho intelectual não se reduz puramente a uma cognição. A subjetividade e sua experiência afetiva de sofrimento e prazer ocorrem em um corpo particular, no qual a experiência subjetiva mais íntima é convocada para a realização do trabalho produtivo, assim como implica um trabalho voltado para si mesmo.

Quando esse corpo se isola, se distancia, se esconde por trás da tecnologia, algo da inteligência se perde, a subjetividade construída a partir dos estímulos e da presença do corpo deixa de se desenvolver e de se refazer desde a experiência do trabalho, assim como outras inteligências, que ainda não podemos nomear, podem surgir. Qual é o tipo de “corpopropriação” que ocorrerá com a adoção maciça do home office?

*dados da Pnad Covid


Rosilene Ribeiro
Doutora em psicanálise | Psicanalista | Consultora em relações humanas e organizacionais | Professora